(I)
Acordo
todas as manhãs
e mesmo nas manhãs mais iguais
e dentro dos gestos mais antigos
há o olhar que reconhece o corpo desabitado
a cama e o naufrágio
e já possuo até a ternura do hábito.
Espanto a zonzeira de alguns sonhos poucos
conserto a mulher de alguns sonhos muitos
e é o mesmo pé
ou a variação de um dos dois pés
para fora da cama e do sono que teima
em concorrer no festival.
E espero a notícia
a denúncia vazia
a renúncia vazia
a hora certa nacional:
meu coração não confere.
Vacilo e me escrevo o resto da poesia de ontem
nos muros
nas folhas
papoulas
nas margens possuídas dos rios sombrios
nos guichês nas roletas
nos terminais da avenida
nos pontos parados
pretos ponteiros
relógios
das eternidades do dia.
(II)
Abrir a janela e verificar:
é o mesmo sol das sete horas
ou são as mesmas sete horas do sol de ontem?
O ornato solar
o sol-pôr
o solstício
o solífugo
o solário
o solcris
o solilóquio
a solidão
a solvência
a solução
a solidez
o solavanco
o solo
o sol-e-dó.
Bem-te-vis brasiliensis, where the sabiá sings?
(III)
Os ruídos lá fora avisam das coisas acontecendo.
O panorama da normalidade mostra proprietários
aquecendo os veículos da comunicação
criancinhas que as mamães oferecem aos raios ultravioletas
o carteiro adiantado premiando com futuras insônias
aqueles que ousam ter residência fixa
a porca miséria
o jornaleiro que faz da manchete do dia
o samba-enredo vencedor do próximo carnaval
as mansardas de mau-gosto
dos sócio-políticos homens de mau cheiro
o sêmen da madrugada escorrendo pelas tabelas falíveis
o som industrial
liquidificadores, batedeiras, enceradeiras, campainhas, buzinas, rádios, vitrolas, descargas, barbeadores, elevadores, apitos, aspiradores, secadoras, lavadoras vibradores.
O condomínio lê o jornal numa simultaneidade
adivinhada por entre paredes.
Comenta-se entrelinhas a crise histérica da vizinha do 301
que culminou com a bicicleta da filha atirada janela afora
uns e outros discutem acaloradamente
sobre atitudes evidentemente anti-econômicas.
Penso sobre as catacumbas
se esta cidade deveria ou não ser subterrânea
o que talvez não fizesse nenhuma diferença
o que dá um certo sossego.
(IV)
A respeito do enjôo matinal nada a fazer.
Decididamente, café e pasta de dentes
nunca tiveram nada a ver entre si.
Mas pior é o espelhinho
aquele que fica logo acima da pia do banheiro
esse agente da CIA incorporado à náusea cotidiana.
Não se vê nele nada além da fotografia
que ilustra a cédula de identidade.
E ele te cospe crimes, antecedentes criminais
e ainda te diz a idade do criminoso.
É preciso que vistas um vestido amarelo,
ordenes teus pelos e batas a porta,
rápida,
atrás.
(V)
Doce ilusão pensar que inverteram as setas
ou os destinos da nação.
A cidade, se não sonhou, pelo menos dormiu.
As placas indicam a mesma contramão
as vias principais geram engarrafamento das soluções.
Pedestres atravessam as ruas nas faixas demarcadas
a segurança pressupõe continuidade.
Há ainda um certo torpor, tamanha manhã ensolarada
afronta os sonados, mas acostuma-se.
A cidade é um formigueiro:
os homens pacientes
os homens decentes
os homens dementes
os homens dirigentes.
O lixo é recolhido.
(VI)
Dizer ou não dizer bom dia?
Selecionar bons-dias?
Grunhir bons dias?
Desejar bons-dias aleatoriamente?
Mas oferecer um sorriso de solidariedade
à meninada que pegou o bonde andando.
…
O trânsito está congestionando pensamentos
alguém diz um palavrão, ninguém se ofende
viva a impermeabilização moral da nova civilização.
O menino de deus avança em minha direção
você ama a Deus? não, eu amo Reich
o sinal abriu verde
o menino ainda tenta eu te amo
mas eu não te amo, cara!
:que desenho fariam as crianças se lhes tirassem a cor verde?
(VII)
o homenzinho de estatura medíocre
conseguiu a última vaga que havia no estacionamento
sua expressão solene registra a vitória
que abre o placar do dia
o homenzinho despe uma das oito peças do seu vestuário
o homenzinho alcança o orgasmo no exato momento
em que bunda e couro marrom da cadeira giratória se encontram
o homenzinho ensaia a face
que vai ser usada durante o exercício
o homenzinho é um self-made-man
o homenzinho foi dono de matadouro em sua cidade natal
o homenzinho progrediu por causa do elevador
o homenzinho agora assina milhares de papéis
timbrados com o selo da organização
o homenzinho usa comprimidos sublinguais
o homenzinho xeroca um extenso curriculum vitae
o homenzinho marca reuniões
o homenzinho não deixa transparecer filosofias
apenas preferências
o homenzinho não presta declarações
formula hipóteses.
O dia é longo e o tempo tripudia.
(VIII)
Uma sexta-feira qualquer do calendário oficial
e o esforço
de pensar sobre a transitoriedade das coisas.
Não ler pensamentos de almanaque
não prolongar contactos com as caricaturas
não legitimar.
E principalmente não acreditar nas sete vidas do gato
ou mesmo nas botas de sete léguas do mesmo gato.
Os cordeiros de deus não tiram os pecados do mundo
o senhor não é bem pastor e tudo falta
a convivência com o relógio de pulso ou de ponto pode ser fatal.
Sabotar a metodologia?
São dez ofícios e um poema?
Não, é apenas a exceção da poesia.
(IX)
Os marcadores do tempo:
hora do ângelus
ora pro nobis
ave-maria-no-morro
apitos.
Andaimes despencam
uma física agressiva mexe com as pessoas
as pessoas antecipam mais um fim-de-semana
as pessoas sonham com domingos mornos
as pessoas tramam o ócio.
(X)
A cidade oferece um espetáculo épico.
Dois heróis do trânsito deram a vida
pela indústria automobilística
aumenta a produção nacional.
A massa é transportada como gelatina estúpida,
os olhares vitrificados começam a derreter-se
no breu da anunciação do caos.
É afixado um cartaz de perigo na porta do mundo
todos os sujeitos chamados raimundo
perdem a senha da rima
os que são:
equilibristas
malabaristas
trapezistas.
A ginástica de uma serra elétrica viril
é confundida com as profecias
esperanças de tantas dívidas
e tantos santos a cobrar.
No caminho
apressam-se os pais da geração espantalho
que a lua acoberta
senil.
(XI)
As chaves nunca estão onde deveriam estar
o que significa que as pessoas
também não estão onde deveriam estar.
As pessoas acreditam muito nessa coisa
de inviolabilidade de domicílio.
O problema é que entrar ou sair
requer prévio conhecimento de casa.
Há um mesmo um apartamento inteirinho, tudo no lugar
a esperança de uma panela de pressão explodindo
e tudo se incendiando há de se renovar amanhã.
Ou talvez amanhã prefira vê-lo totalmente saqueado
os discos e a televisão invisíveis
os vigilantes do meu sono atônitos
quando da queixa-crime.
Nada disso.
Quem sabe uma invasão por parte de micro-homens
de algum micro-cosmo?
Ou mesmo por parte dos homens-da-lei?
O destino de um apartamento é algo de muito misterioso.
(XII)
Privada e privacidade.
Cantar, desafinar, brincar, fazer coisas
tudo que se aprendeu como atentado ao pudor.
Água, um sabonete que limpe, desinfete
mate germes, desodorize e ainda perfume.
Água, água-de-cheiro, água de colônia, água benta
a eterna farsa da fêmea naturalmente perfumada
assim se insinua a mulher que sabe o que quer
– sorria, você está sendo filmada –
não te dão tranqüilidade.
E o espelhinho a instigar transgressões
a recitar punições
minha cara pálida
procurando minha cara-pálida
no espião que possui até a estratégia do lugar.
Disfarçar, rápido!
mostrar-lhe a língua vermelha, uma careta horrorosa
desencadear uma série de contorções faciais
mil personalidades hão de confundir o inquiridor.
É isso, a multiplicidade de crimes e criminosos
a confusão da identificação
e depois
o perdão geral pra culpa geral.
(XIII)
Decisões melhores e piores já foram tomadas antes.
Usar o mesmo vestido amarelo
aquele que foi massacrado durante o dia
e muito possivelmente deve estar recendendo a suor
e sanguemenstrual pode parecer falta de imaginação
ou uma tática pobreza.
Como explicar que o amarelo consegue manter um equilíbrio
entre o eu exterior e o eu interior, entre o ying e o yang
e que além disso é o único vestido amarelo que eu tenho
e que é fundamental vestir qualquer coisa que seja?
O arquivo da memória mostra mães e avós envolvendo os corpos com sedas e tafetás, protegendo seios e coxas dos vampiros das sextas-feiras fotos plissadas nos álbuns do erotismo familiar.
Uma explicação peculiar:
tudo não passa de uma genética loucura circular
inclusive a frigidez de permeio.
(XIV)
A sexta-feira é sangüínea.
Qualquer um
pode pretender caçar bruxas
matar amantes em encruzilhadas
trepar mulheres infantis
ouvir poetas malcasados
consolar bichas em declínio
conversar com as putas velhas das cercanias mesmo
sair pela tangente
instituir a poliandria
assistir a performance do john wayne
usar um vestido amarelo
viabilizar o apocalipse
fazer declaração de bens
brincar com a própria adrenalina
psicanalisar a raça
resistir
converter
rebater
contestar
ceder
repicar
transcender.
Sexta-feira se repete em sociedades fechadas
enquanto um furacão
surpreende os habitantes
de uma ilha perdida no Pacífico.
(XV)
Lá fora é noite degenerada.
O sul pode ser divertido, o norte pode levar à morte.
A cidade arquitetada promove encontros
há um homem esperando uma mulher
há uma mulher esperando um qualquer
há uma nova moda vestindo os rapazinhos e as menininhas
a repressão sofisticada faz com que as pessoas
girem em torno dos mesmo lugares
fronteiras abstratas funcionam satisfatoriamente.
Há uma festa.
Festa: comemoração
solenidade
regozijo
divertimento
e quem sabe rascunho de uma nova bíblia.
Os animais caem n’água.
(XVI)
Festa? É uma festa?
Necessariamente não.
(Não se pode agradar a gregos e troianos,
ou um ou outro.)
Se bem que na pauta é festa,
delírio coletivo,
bacânticobacará
ou seita de ali-babá
com seus mais de quarenta ladrões.
Quem consome angel dust?
Quem faz masturbação lisérgica?
Quem está armado de pênis e psi?
Quem sabe do contracanto, da contradança
quem sabe contrariar a alegria?
E fazer poesia?
Catarse na noite dos tiros?
Amor terno e ereto, torto ou certo?
Voltar pra mulher amiga, banida?
Quem sabe ter mais sentido
desobedecer a sina?
Momentos de valentia.
Reina a calma em todo o brejo.
Dez, quinze, vinte anos de porre,
Experiências ego sum qui sum.
(XVII)
A cidade ainda oferece sopa de cebola e gonorréia.
Vítima é vítima.
É prudente não dirigir embriagado
é civismo respeitar o letreiro da coca-cola
é distração atropelar o indivíduo
é tropical se safar dessa
e colocar o débito na conta do diabo
é hilariante dar nó no rabo desse mesmo diabo
é besteira se preocupar com o abastecimento da manga rosa
é fim de noite
é fim de qualquer coisa
o próximo instante pode ser o mar invadindo o sertão
ou cuba parindo filhos do tio sam.
CARPE DIEM (XVIII)
É preciso chorar
mas está acontecendo a melhor sopa da cidade
a melhor da tua vida talvez.
E as lágrimas se disfarçam com um chiado qualquer
um som que reproduza sucção
se não é a vida uma onomatopéia.
O garçom alcooliza a minha
a tua
a nossa desgraça
(pra que rimar amor e dor?)
e nos embebedamos:
um brinde
ao partido brahma chopp
traga a cachaça, vou berrar na praça
o meu amor que eu tenho converteram em delito
sou apenas uma mulher velha
lamentarei sempre minha juventude
moreno bonito
impeachment no bar do poeta
o diabo não sabe mais
façam jogo, senhores
olha o urubu no telhado
qualquer corpo apanha
perdão – se houvera
o rei morreu
nas intermináveis filas do sexo
levado a cabo por sutis manobras
joão amava maria
o olhar ultramarino sonso
é porta fechada pra tua passagem
mira que ira
que eu quisera ser a mulher amada
eu já te amo como sinfonia
que aí no Leme o mar é teu
sou uma mulher fraturada
queria era morrer sem arrependimento
olhando pra você retilínea
ah
tu me matas
tu me consolas.
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