MÃOS
São mãos nos meus cabelos,
nos meus olhos, na minha boca
são mãos treinadas em percorrer a carne viva
mãos que procuram a parte escondida
são mãos acostumadas, salientes,
que me desenham flores no corpo todo
que me ativam a glândula
são mãos que mentem o gesto
escondem de mim o resto
e, depois das mãos
os pés acima de tudo.
Ai, estão me machucando!
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OPERÁRIO PADRÃO
essa preguiça / essa mente / essa dor de dente
esse marasmo / esse papo / esse orgasmo
a nudez / avidez / miserê
a barriga / a lombriga / a ferida
o asfalto / o tijolo / o sol alto
a mulher / o filhote / o boicote
a marmita / cobertor / a birita
o consumo / o insumo / o salário
a escola / o calor / coca-cola
o projeto / o teto / o feto
o lixo / a cruz / o cristo
o pão / a mesa / o chão
a loucura / cansaço / paúra
a faca / o grito / o rito
o jornal / o grifo / o arquivo
morto.
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MOVIMENTO
Te quero
acima das coisas, dos tempos.
Quero em ti o fogo que me queima as asas
a boca a me tecer enganos
o equívoco olhar.
Te quero
e me perco no corpo teu de vagar cigano,
onde me engano
e me entrego
e me engano
e te quero
e tudo cresce
e tudo avança:
não há como evitar a lança
o doce sangrar.
Me engano e me alimento.
A fruta. A flor. A pedra.
Fogo-fátuo
a pele a te querer
antigo e como antigamente
eu confinada num abraço forte:
te quero inteiro como se fosse a morte.
Dentro das noites e no nascer das manhãs
te quero motivo
vivo
me ouvindo dizer
patética como sempre
te quero mais:
– mais alto
– mais forte
– mais fundo.
Te quero
e quero estar a antecipar
a cor
o gesto
o grande mar de depois.
Te quero
pasto e caçador
e a carne a não pedir explicações
apenas movimento.
Apenas movimento?
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CURRICULUM VITAE
Tenho a carteira de identidade
Tenho um número na sociedade anônima
Tenho a individualidade restrita
Ao metro quadrado
Tenho um patrão
E um padrão
Que não oferece alternativas
Tenho a agressividade enquadrada na lei
Tenho o rosto perplexo
Quando falo de sexo
Tenho a repressão que me auto-censura
Quando escrevo, amo
ou saio na rua.
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ANTIPOEMA
antipoeticamente falando-escrevendo-sendo
brincando com as palavras pessoas
comigo também brinquedo meu
antitudo-anti-sendo-até-não-vendo
não sentindo
as coisas abaixo
as coisas acima
de que lado estou
de que lado sou
estou
antigrávida-de-quem-não-sei
contrariada
mira que ira
preguiçosa e desordenada
sem alvo nem direção
longe ou perto
sem nada
nada sabendo
lassidão mental
paralisia física
palavras palavras
e mais palavras
sem realidade óbvia
nem bom nem mau
apenas
um parto normal
sem dor
nascendo versos deformados
chegam ao mundo vagabundos
falidos desde a copulação
sem pretensão
nada mais a fazer
é só crer
que isso acontece
com os melhores poetas.
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SEM TÍTULO
Lamentarei sempre minha juventude
os feriados nacionais
os dias santos
os carnavais
a idade festejada
sob o olhar vigilante
do pai intransigente.
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NOITE
encontrar por aí
numa noite vazia ou começo de dia
um homem de qualquer terra mar lugar
e estar em declínio corporal
temporal
e ser amorfa
calar voz
bloquear pensamento
ser animal
coruja ou cotovia
gata ou leoa
boa de cama
e do coma sair
sair por aí
farta
colhendo o tédio
e mantendo a dor
de cabeça tronco e membros
divididos.
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A FANTASIA DA VIABILIDADE
Já pensou eu morrer logo agora
atropelada por um corcel 77 branco-gelo
dirigido por um debilóide urbano contumaz?
Minha cabeça há de rolar no asfalto
miolos voarão em todas as direções
causando vômitos nos transeuntes
braços e pernas perdidos achados pela criminalística
cabelos enrolados nos pára-choques
o coração sendo lambido por um cachorro faminto
e meu pé surrealisticamente engatado nas grades de um bueiro.
E depois a burocracia dos papéis,
seguro contra terceiros
laudo de exame cadavérico
perícia e recomposição para reconhecimento do corpo
identificação social para categorizar o enterro
o serviço de limpeza urbana
convocado às pressas para lavar a via pública
o outdoor anunciando o Corcel 78 cor-de-céu.
Que morte imoral
indigna de um poeta distraído
e sem sindicato.
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TEMPO DE PROMESSA
Tempo de perder tempo
Tempo de fazer da dor a festa
Tempo de fazer da festa a meta
Tempo contagem regressiva
Tempo idade repressiva
Tempo incerteza ofensiva
Tempo de jogo a sorte
Tempo de sorte a morte
Tempo de morte o corte
Tempo de afogar a vida heroína
Tempo de vagar na noite perdido
Tempo de contar o tempo vivido
Tempo desencontro coração
Tempo desencanto solidão
Tempo desvario paixão
Contra-Tempo:
Nada como ser dono do tempo
Nada como se dispor do tempo
Nada como matar a gente de cansaço
Por esperar bom tempo.
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ACORDA, AMOR
Decifra-te ou te decifro
Use ou coloque um chifre
Durma no sofá
Faça seu chá
Queime o código moral
Tire o peso da tradição
Do seu roupão
Tome um banho de sal
Pra descarrego de maldição
Construa
Destrua
Quebre a prestação
A hipoteca
Desconfie da correção
Me solte, se solte
Olhe em volta
Caia do chão
Suba o degrau
É mais que colar o grau
Ter diploma ou carcinoma
Trabalhar de oito às seis
É sua vez
Saia
Pinte ou borde
O muro da construção
Comprometa seu recado
Escolha qual é o lado
Pare de fazer regime
Gaste seu gás
Reponha mais
Faça uma festa
Escreva na testa
A posição
Na vertical pule na cama
Na horizontal penetre a dama
Faça guerra à vitamina
Olhe no espelho
A cara que contamina
Tome raiva da vacina
Antimanifestação
Escreva sua opção
Não se esconda no concreto
Não viva de enganação
Não morra de mal secreto.
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CIDADÃO BRASILEIRO
O sujeito recebeu um mínimo
O SUJEITO RECEBEU UM MÍNIMO
Voltou pra casa bêbado
VOLTOU PRA CASA BÊBADO
Puxou da peixeira
PUXOU DA PEIXEIRA
Matou a mulher
MATOU A MULHER
E afogou oito filhos.
E AFOGOU OS OITO FILHOS.
Depois chorou
DEPOIS CHOROU
E meteu uma bala na cabeça.
E METEU UMA BALA NA CABEÇA.
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TEMPOS MODERNOS
Na minha rua passa ônibus
Trazendo gente que vem trabalhar na cidade.
Como diz meu irmão,
Não passa nem mais boi nem mais boiada.
O meu vizinho
Não planta samambaia chorona
Mas alimenta uma loucura social:
Tem um filho débil mental.
Como diz meu irmão
Cada família cria seu próprio maluco.
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A BOMBA
Vou plantar aridez mil desertos
Vou matar o humano os rebanhos
Vou secar o planeta os terrestres
e a terra regarei com o raio
para que só cresça o fogo que de mim nasceu.
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MULHER DE VERMELHO
Sentada
lá estava ela
perto da orquestra desafinada
bebendo cuba-libre com o canudinho
o perfume madeiras do oriente
se misturando
ao seu cheiro
gosto
tempero
doce-azedo.
E seu ar era de tanta urgência
que ela já nem mais olhava as caras
simpatizava automaticamente
com qualquer possibilidade de companhia.
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