TEATRO DE MISTÉRIO
É limiar
– noite e dia –
entremeada mentira.
(Trago a alcoolizada angústia,
o olhar maníaco e desentendido.)
Fora é dia? É noite? É tempo ainda?
Roteiro:
as alavancas progressistas
sofisticados equipamentos
dessemelhanças de mim
– sou uma caricatura ostentada.
Leio o script.
Gargalhadas.
Mais água
mais ar
mais
mais.
Tudo responde mais seco
mais sombrio
mais arredio.
(Quem foi que disse que na vida
ou se é público ou se é ator?)
Fim do I ato.
A atriz busca o recato
alisa o gato
calça o sapato
aceita a rosa do soldado.
Platéia: que bom soldado!
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OBRA DE REFERÊNCIA
que me importa
que você me exporte
que você me frete ou me pague
me limite ou me taxe
que me exporta
se te importo ou não
se te deficito
te dou lucro ou prejuízo
e na balança pese ou não
que me importa
se sou bônus
ou bagatela
a preço de ocasião
e que me importa
se o produto interno é bruto
se o plano é nulo
e o desenvolvimento lento
e que me importa ainda
o curto ou longo prazo
se sou apenas poeta?
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QUALQUER COISA
qualquer dor entranha
qualquer uma arranha
lanha
qualquer um açoita
qualquer corpo apanha
qualquer coisa invisível adultera
esteriliza
dilacera
e degenera a fibra
qualquer coisa
desanima em santidade
delibera
e vive de extremidade
qualquer coisa morre
qualquer coisa é consumada
com um tédio que o mundo comporta
qualquer coisa é ser
irreversível
mesmo onde acabar é possível
quando a dor entranha
arranha
lanha
e o próprio corpo apanha
acariciando o chão.
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CORALINA
Coral, Ina
É pedra-bonita,
coisa do mar.
Mulher-mar,
Coral-Ina.
Mas quando me esqueço
de propósito
do L que te liga às letras
e vizinhas vidas
e você cora, Ina
e me oferece café, Ina
ou uma Coca, Ina
e me corrige suavemente, Ina
ainda assim sinto
que tuas palavras são
rajadas de metralhadora, Ina.
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NESTE PAÍS
de bananas tropicais
de ouro e prata
café tipo exportação
cigarro que faz o sucesso
e muito rá-tá-tá-tá
neste país
poetas da fome
cinema catástrofe
televisão substituindo o jantar
chuchu milagroso
e outras heranças
tupiniquins
neste país compute-se:
empregada na fila do pão
doente na fila da previdência
inocente na fila da injustiça
dona-de-casa na fila da ilusão
cidadão na fila do trem
da concentração do povo
na fila da liberdade
:todos na fila
e o último da fila a esperar
a democracia
e o primeiro da fila a encontrar o guichê fechado
e o dono da fila a coordenar a fila
fila indiana americana latina polonesa
fila pra receber pagamento
fila pra reclamar aumento
bom comportamento
e muita paciência histórica
pouca complacência
e muita gente histérica
os últimos sempre serão
os primeiros.
fila na semana santa
pra comprar o camarão da indigestão
fila no dia das lágrimas de finados
fila da gasolina em estilo ocidental
fila do hospital
pra ortopedia ginecologia alergia
fila pra desfilar naquele dia
fila pra passar na roleta
paulada na cabeça
de quem sair da fila
façam fila
fila pro natal dos pobres
fila pra habitação
fila da reclassificação
fila pra ver navios
fila da identificação
triagem e porta de camburão
fila pra concurso público
fila da liquidação
passagem pro mundo cão
cão de fila
fila pra concepção
fila pra esquerda
fila pra direita
o centro avante esperto
chutou pra fora do gol
fila pra comer o capim nacional
corpo no necrotério
na fila do buraco no chão
filas
pra todas as taras
todas as insânias
fila pra fazer cocô.
…
na porta do motel
a fila do sexo
imprevisível.
…
um casal
dentro de um alfa romeo
acende dois cigarros minister
e as duas cabeças conjeturam.
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1964
Perdão – se houvera.
Um jeito certo – se houvera.
Pela tua mão que desviou as correntezas
pela devassa da tua prática
pelo sorriso da tua face ilegítima
perdão – se houvera.
Temes ser ancião
temes o vento e a tempestade
Temes vergar aflito
e se desculpar em vida:
esperas perdão
pela lesada carne
pela alma invadida?
Perdão – ou cura – se houvera.
Minha vontade é inibida
e a razão não anima o anticrime
mas perdão
não:
que em toda bebedeira
(e já com a goela farta)
sempre penso em um jeito certo
para o teu vermelho chão.
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Do livro Exercícios de Amor e de Ódio