GATO PRETO NO ESCURO
O passo de medo
o fracasso
cabeça idéia
preconcebida de dor
o passo receio
de evitar o contágio
o passo paixão
consumindo a carne
o passo culpa
impedindo o ato
o passo restrito
o sexo
interrompido.
O passo sem trégua
e o mundo sem dó.
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POMBA-GIRA
Eis a mulher dos bandidos
arrimos
perdidos
pirados
Eis o ventre antigo
da festa
da traça
da farsa
Eis a fêmea do riso
do grito
do pico
Eis a sombra dos muros
dos urros
dos tiros
Eis a mãe disso tudo
da gira
do mundo.
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EXERCÍCIO DIÁRIO
Da janela olhar meu país
– a terra roxa e a raiz –
garras da fome fincadas em entranhas varonis.
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A LUA, MAS NÃO A LUA DE LORCA
Havia uma rua
uma mulher nua
uma lua que subia
que descia
que aparecia e desaparecia
que se assanhava e que desistia
que hesitava e por fim se abria
fazia noite, fizesse dia.
No dia do crime da lua
– que se deu de imprevisto por causa do amor –
a rua toda emudeceu suas casas
e a mulher foi julgada
silenciosamente.
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MITOLOGIA
Meu amor é você
chegando em casa
na hora certa de chegar
esquecido das flores
e da carta de recomendação
me convidando para uma danza habanera
antes dos atos de rendição.
Meu amor é você que chega atrasado
e já encontra o quarto desarrumado
pela minha hipertensão.
É você que chega num estilo indefinido
como fazendo cena íntima de novela
e saindo do ar depois.
É você e a gesticulação
que antecede o salto ornamental
nas dobras do meu coração.
Meu amor é você
que vem sempre em missão de agitação
me amar com seu ódio santo
e me odiar com seu amor de esteta.
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ANA
Para Adriana
Ana-banana
gamela suada
o rosto de giz
curiosa de ouvido
boca e nariz
atrevida com a mão
o passo de andar tudo correndo
ana ao contrário tudo entendendo
remorso nenhum de me duvidar
ana e a razão de amuar-se
ana de instinto despindo o juízo
ana de fato e de muito riso
ana dormindo com anjo custódio
ana acordando manteiga com pão
ana domingo toda semana
ana brinquedo-de-chamar-ana
ana sonhando pueril furta-cor
ana pondo e dispondo mundo
a seu favor
ana mirim adriática origem
ana enfeitada baiana por mim
cintura e quadris de futura donzela
não séria e do amor
aprendiz.
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AS COISAS TROPICAIS
Iremos pra dentro
da terra uterina
do coração espelho
do teu pensamento
iremos pra dentro:
de fragmentos
ainda sonolentos
despertar intactos
iremos vento:
soprar direções
cantos insensatos
iremos pão
beber ilusões
de amores tácitos
beijar a boca
das multidões
iremos mar:
rever infâncias
assobiar
iremos correntes
vertentes só navegar
iremos sim:
responder amor
descompromissar
anunciar que tudo
desacostumou.
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AQUARELA BRASILEIRA
Pés no bruto chão
e mãos vazias
sem rumo no olhar
no desfazer das rimas
amor, pão e alegria se acham no final da
linha.
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