COMPANHEIRO
Fui traída nas fronteiras da minha seriedade
Antes e durante tanto tempo cuidadosamente vigiadas
A mim só chegavam rumores
Notícias de mortos e feridos que se salvaram alguns
Amores caídos sem norte e sem sorte
Insatisfeitas combinações de corpos nus
Nem pensar numa rebelião ou de me entregar ao inimigo
Meu ouro bem guardado debaixo da saia
E o santíssimo espírito vadio que toda mulher tem.
E também ninguém se atrevia
Que eu bancava a maior autoridade
Pois comigo-ninguém-pode
Atrás das minhas virtudes e delírios
Imagine então o espanto com a agitação
Presságio de invasão e outros atentados
Neurose de apaixonamentos e resquícios políticos.
Trata-se, estás vendo, de verdadeira guerrilha
Desse rebelde por minha causa
Os olhos mais revoltados de mel e desejo
E eu só ouvindo discursos revolucionários
Que de ternura não se perdeu jamais
Tendo que enfrentar com latinidade
Um campinho de batalha improvisado
Na cama caliente
Uma bagunça lovestory em Guantanamera
E juntando as almas puríssimas
Nos tornamos perfeitas rosas socialistas!
Mas quem disse que se trata de uma ação popular?
Era só o nosso amor de ontem na clandestinidade
Com meu guerrilheiro bem na linha de fogo
Onde entreguei todos os segredos do meu estado
A América Latina desenhada na minha bunda
Ótimas posições no front
E duvido que alguém perdesse uma guerra!
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FOLHAS SOLTAS
(Nº 3, 10 de julho de 1988, publicado na Tipografia de Brinquedo por Briquet de Lemos)
– E qual é a vitória de uma gata em teto de zinco quente?
– Apenas permanecer nele o máximo de tempo possível.
(Diálogo entre Paul Newman e Elizabeth Taylor no filme Gata em Teto de Zinco Quente.)
Foi a cor da roupa
o rouge
o batom.
Meu coração ficou nervoso.
Pensei em ligar pra dizer que te amo.
Senti o sangue subir à cabeça
ao pensamento vulgar
e me excitei com um gesto
perfeito e desfeito no ar.
Mordi o lábio
com o dente canino
e o polegar
fulminei no dial.
Liguei pra dizer que te amo
que aguardo
a posta-restante.
Hoje foi um dia
de passar a vau.
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ESTUDO PESSOAL
Rainha do lar
tive sonhos de núpcias inconfessáveis
gestos sem rituais
risos frouxos
alegrias infantis
insônias sexuais
e máquinas de escrever
palavras por nenhum centavo.
Mãe dos meus filhos
tive sobressaltos:
não lavei nem cozinhei os legumes
não bati no liquidificador
não fiz as sopas amarelas e pastosas
comprei prontos no supermercado
os potinhos que me acusavam
de ser uma baby killer.
Esqueci as panelas no fogão
para escrever poemas para os seres amados
e servir nas horas do almoço e do jantar
Não arrumei as gavetas dos armários
nem tirei zelosamente o pó dos objetos.
Deixei que o cão roesse móveis e sapatos
e abri a porta para estranhas criaturas
que assustavam porteiros e vizinhos.
Não cuidei do patrimônio familiar
Para a colheita dos dias de amanhã e depois
e desenhei muitas formas
e pintei muitas cores
para os herdeiros do meu ventre.
Embalei os bebês
ao som de summertime
no vinil arranhado por janis.
Usei flores no cabelo
e me vesti de mico-leão dourado
para ser mais sexy.
Não usei batom vermelho
e paguei uma ninharia
por calcinhas algodão.
E dancei distraída todas as músicas
pisando nos famosos astros
atá esbarrar nos ferros
nas fardas
nas armas
nos punhos
nos socos
nos gritos
na ordem
do pelotão.
Então coloquei gelo nas manchas roxas
no meu rosto
nas minhas pernas.
Coloquei gelo no meu coração.
…
Agora sou eu ainda mas não a mesma
que se vê em sete espelhos partidos
de um hospício sacrossanto lar.
Sou eu – e não a mesma
hoje mais velha e cheia de truques
sobre como colocar gelo no lugar.
Sou eu agora
num dia nublado ou de indisposição.
eu – e não a mesma
que depois de passados anos de constituídas coisas
que por estarem tão constituídas
não precisam mais que eu assuma presidência alguma.
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