DOIDO
Disse que tinha olhos azuis
(cobalto? cerúleo?
Não. Ultramar)
Disse que se chamava
— como é mesmo o nome
naquele inidioma?
E vinha de muito longe:
no mapa não existiu
nunca uma indicação
para tal geografia
Dessa terra desmarcada
era o rei das sonharias
Contou-me de seu povo
de ancestrais e rainhas
Narrou acontecidos
de mansos e loucos varridos
Apontou com a mão no peito
a lasca no coração
(pensei ter ouvido ruídos
tamanha era a solidão)
De onde veio trouxe nada
de ouro materializado.
O que deixou no caminho
era tudo que pesava
por isso o bolso vazio
e o poema bem trajado
Na memória um mundivivo
e muito para viver:
escrever em pergaminho
desenhar sobre cajados
acordar para o solnascer
Perguntei se era maluco
disse que era sereno
Perguntei se tinha medo
respondeu que só de estátua
Se era de ter paixão?
que nem se preocupava
Se queria mundo novo
melhor pra toda gente?
era tudo o que sonhava:
Quando vinha furacão
era mais que renascente
andava por toda água
vazava em espiral de vento
girava junto com o tempo
Mas e de amor o que sabia?
que só assim se construía
Se vinha comigo então
pras terras que estão no mapa
fazer nova liberdade?
era o que ele queria
E uma mulher nos seus braços?
se eu quisesse caberia.
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ELA
Ela é louca se pretende ser femme fatale
logo ela
tão à vontade no pijama amarelo
tão descuidada dos objetos de maquiagem
tão de óculos e livros debaixo do braço
um alô bem tônico ao telefone
e um par de jeans tão retos e solitários
Ela
sem bijuterias
sem altura nos pés
os dedos nus
logo ela
sempre tão sincera, pudera
assim mesmo é que jamais
Ela que sequer é loura
e se recata toda se alguém olhar por ali
nem tentar algo além de um enfeitiçamento
e ser achada vaga estrela do Cruzeiro do Sul
sensual nos cantos de um apartamento
após cinco ou seis lances de escada
Aí, talvez
ela comece ficando descalça.
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ELOGIO À FALSIDADE
Quais serão tuas falácias,
quando te apresentas fulano de tal,
seu mosqueteiro,
pisando sobre a via láctea,
chovendo em meus lagos,
desarrumando meu peito?
Quem é você que me chama sob águas
e me faz de égua a correr por sobre pontes
esquecida dos cabrestos e antigos donos?
Qual é tua loucura rodopiante,
teu secreto,
teu incesto,
tua desonra,
a urdidura que rói tuas unhas?
Onde tua maldição, tua doçura
e o tiro de revolução?
De onde tais olhares
embutidos em lentes tripartidas,
obstinados na tintura de uns versos
sobre letras verossímeis?
O que fazem desconcertantes essas mãos
em tua boca de mentira e incitamento?
Por que tua existência que eu não sabia antes
como primitiva argila
trincado monumento?
Quanto tempo perdido tem esse teu beijo
depois da ronda na cidade,
da baldeação dos corpos,
da reiterada cama onde te aninhas?
Como tu ousas chegar já na saída?
E por quais motivos a mim tu necessitas –
ao lado inofensiva,
por cima desconcertante,
por baixo esmagada e combustiva?
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DESGRAÇA POUCA É BOBAGEM
O filho da mãe há tempos não queria intimidade
Desejo carnal era só pela picanha mal-passada
De noite, na cama, não encostava, não roçava
só dormia e roncava
Adiantou nada colorir o cabelo com luzes e reflexos
Fazer o caminho de Santiago na esteira
Nem seguir a dieta da vaca magra
Invisível se tornara, quem sabe surda
Pois sua voz quase não ouvia
Chegou a ser confundida com o sofá da sala
E foi acusada de ter perdido um gol de placa
As amigas sorriam amarelo e diziam vai passar
Os búzios e o tarô revelaram leucemia e falência
E o detetive lhe entregou as provas digitais do motivo
a causa loura, alta, bonita e estagiária
de mesa, cama e banho
Assim endoideceu:
Pechinchou um calibre 38
determinou um rompante
desfez a linha de carretel
deu nó na barra da saia
e rodopiou num alucino
gritando mesquinharias na cozinha
pra vizinhança testemunhar.
Mulher traída é cidadã
plena de direitos e atenuantes:
atira pra matar.
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HERÓICA
Naquela boca eu desejava
um beijo
e uma torta de merengue
e depois lamber aquela torta-boca
que a gula sempre me deixa
o melhor pedaço por último
(essa minha gula adulta
acha que ninguém vai me roubar o último pedaço)
Olhando os olhos dele
fiz dentro daquela boca um beijo
antes que um
dois
três pensamentos
mandassem calar
a boca a beijar
Depois
sem torta e sem beijo
chorei no abstrato.
número sem par
Mas nunca fui tão nobre
sem precisar de um tango
(caráter é o que não me falta nessas horas)
mesmo cheia de vontades
suspendi o prazer
e beijei a espuma do travesseiro
Eu beijei a lona
mais uma vez.
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