Há dois anos deparei-me com um par de tênis, estrategicamente exposto em uma vitrine esportiva, olhando com o maior sex appeal para o meu olhar consumista embasbacado. Eu estava em plena crise de lesa-economia-doméstica-para-suprir-carência-afetiva. E ele, o singular tênis, oferecia por 14 contos brasileiros (divididos em duas parcelas, um pé por mês), toda uma filosofia de vida. Que começou a funcionar quando notei que ele se integrava gracinha ao meu jeans enrugadinho e minha camiseta estampada de Marilyn Monroe.
Então, perdidamente seduzida, ouvi o canto da sereia do maior vendedor do mundo, que se pôs a exaltar as qualidades, mistérios e segredos do tênis. Caí, definitivamente e de cara, pelo design futurista arrojadíssimo, tipo ninguém-segura-minha-alegria: linhas exclusivas, formato super anatômico, solado de látex reforçado com áreas de giro, base antideslizante, reforços de borracha nos pontos de maior atrito, palmilha amortecedora dupla, revestimento de nylon dublado com espuma em cima de um couro acamurçado di-vi-no.
Seu desenho trazia, ainda, outros traços marcantes de personalidade, além de uma linda biqueira de couro. Mas o que me ganhou mesmo foi a ausência daqueles ilhoses de ferro e seus emaranhados cadarços. No lugar dessa complicação ele tinha um incrível, fascinante e evoluidíssimo acessório da espécie tecnológico-esportiva: fechos magnéticos. Isso mesmo, fechos magnéticos, aqueles dos “barulhinhos de biblioteca”, de sensação rasga-coração.
Vencida, enfim, fechei a compra, paguei o primeiro pé e inaugurei o tênis. Foi a maior visão do futuro que já tive com os pés no chão. Deixei a loja absolutamente calçada em minha nova filosofia de vida,o próprio sucesso, três sets a zero, medalha de ouro nas olimpíadas do Eixão do Lazer, autógrafo do Renan, selo de garantia internacional, pura emoção.
Um raro prazer, campeoníssimo.
Durante alguns meses vivemos em romance, ele sempre dando o primeiro e bom passo (o que deixaria minha avó muito feliz, se estivesse viva). Ele me levou para o Movimento Verde, galerias de arte, livrarias, bibliotecas, clubes, parques, zoológico, restaurantes naturais e churrascarias, maratonas e danceterias, e minha fé no seu conhecimento de trânsito e transporte pessoal jamais foi abalada. E isso com um natural look de fazer inveja às madames e seus poodles.
Ruas, estradas, asfalto, paralelepípedos, curvas perigosas, desníveis e quebra-molas, tudo isso para ele era liderança, dinamismo, ousadia, maior ataque, mais impulsão.
Resistimos heroicamente às tentações do mercado.
Esnobei um escarpin vermelho e uma sandália dourada. E mesmo assim freqüentei demais com o meu must of tennis, sintonizando amor e cor e umas roupinhas bem à vontade – que eu jamais o afrontaria com as tétricas calças fuseau ou collants apertadíssimos. Eu e meu tênis (neste momento pintou um ato falho, já revisei) sempre combinamos em tudo: camisas chambray, jeans délavé stone washed, meias transadas e jaqueta de nylon cirê 100% poliamida acolchoada.
Em dias de fazer mais chique, acrescentava ao visual determinado pelo tênis um jeans clear com camisa de linho e um agasalho soft com cachecol da Noruega. Ou então um moleton Índigo Katmandu e as tais meias transadinhas. Tudo em inglês, para ele entender.
Sempre cuidei muito bem do meu tênis. Meus pés eram tratados com creme removedor de pele dura para acabar com as asperezas. E um talco especial anti-chulé do Dr. Scholl. Para ele, banhos semanais com shampoo de ervas e um condicionador de gérmen de trigo para garantir sua flexibilidade, maciez e excelente desempenho que, diga-se de passagem, sempre me deu prioridade em tudo e vantagens progressivas, além de facilitar minhas reações químicas.
Dia desses passei pela loja onde o comprei. Na vitrine, um tênis irmão de série, novinho em folha, prepotente (outro ato falho, sorry), atletíssimo. Um baque na minha fidelidade, plenamente restabelecida assim que vi a etiqueta com o preço: 214 contos!).
Corremos, eu e meu tênis, para casa, para a cama. Nunca o amei tanto como naquele dia, o dia de sua supervalorização. Dei-lhe um trato especial, fiz mil honras. Prometi evitar qualquer tipo de rallye com a polícia e beijei seu colarinho ainda acolchoado. Bom tênis, pensei. Para a vida toda. 214 contos brasileiros, imagine! E em dólar, câmbio oficial? E no paralelo?
Passaram-se dias de intensa lua-de-mel.
Hoje acordei às 10 da manhã, para escrever uma crônica para o jornal. Procurei o par de tênis debaixo dos meus sonhos, digo, da cama. Não estava ali. Procurei nos armários, procurei pela casa toda, nos esconderijos dos gatos, do cachorro. Nada. Sumiço geral. Parti para uma investigação e interroguei os suspeitos. Todos tinham álibis perfeitos. Menos um dos meus filhos pré-adolescentes, o de número 36. Bingo.
O imberbe e meu tênis foram caçar lagartos, fazer bicicross e localizar corujas buraqueiras no cerrado. Voltaram ambos em estado lastimável, o tênis indo direto para a máquina de lavar e depois para o forno, e o menino para o chuveiro.
Meu tênis morreu por centrifugação e queimaduras de terceiro grau. O menino sobreviveu e disse para eu não comprar mais tênis com “carrapicho” (fecho magnético), pois estava ultrapassado. Sugeriu um tal Comander, que funciona também como antidepressivo.
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