Cora Coralina

Cora Coralina. Foto Joaquim Firmino.

Seu nome verdadeiro era Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Quando completou 95 anos, ela  disse: venho do século passado e trago comigo todas as idades do mundo. Morava na Casa Velha da Ponte, às margens do rio Vermelho, e sempre recebeu, gentil, todos que a procuravam em Goiaz Velho, sua cidade natal. Cidade de pedras angulares, de paralelepípedos que acolhem românticas pantomimas de violinos e luares, as sombras móveis e noturnas de seus habitantes projetadas nas paredes das casas, antigos mognos emoldurando janelas e donzelas, a Santa Bárbara ano inteiro lá no alto do morro, adormecida e bela, e todas as cores da serra inventando um cenário de natureza caprichosa. Nessa cidade, as mãos de Cora Coralina trabalharam o pão, o açúcar e o verso:

“De pedra foi o meu berço.

De pedras têm sido meus caminhos.

Meus versos: pedras quebradas no rolar

E no bater de tantas pedras.”

Eu sei que foi assim. Sei que a sua flor nasceu da pedra. Sei que da pedra vieram doces brancos, sob a forma de bichinhos, esbeltos cisnes. Sei que retirando as pedras ela descobriu a terra e que na terra suas mãos cumpriram a semeadura, o plantio, a colheita. E até alegraram-se quando dos bananais surgiram eternos confeitos adoçados.

Cora Coralina, Nossa Senhora Feminina, dona de hábeis e preciosas mãos, pequeninas e  frágeis para carregar pesados estandartes, mas  fortes para cavoucar a terra. Mãos que amassaram o trigo, varreram, cozinharam, lavaram. Mãos fortes que abençoaram filhos, “mãos domésticas e remendonas que escreveram as estórias dos becos de Goiaz.

Mulher de fibra e de pedra e milenar ciência, com olhos espiões que vieram do passado para transmitir os caminhos de suas experiências de vida. E foi esta mulher de porte miúdo e alguma vaidade na voz quem me disse: “A mulher tem que agradar o seu homem, até levar-lhe os chinelos quando ele chega em casa...”. Não me espantei. A lição é de Cora Coralina, que nasceu antes da poesia e de qualquer feminismo. Sua luta não foi por melhor salário, mas por um trabalho de amor à vida, à palavra escrita, à sabedoria, ao homem companheiro de jornada. Fazer um doce, buscar um chinelo, amassar um pão: nada aviltaria a dignidade de uma Cora Coralina.

Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho, servidor do próximo, honesto e simples, de pensamentos limpos. Seremos padeiros e teremos padarias.

Não, a vida não se desgovernou nas mãos de Cora. Pelo contrário, ela soube muito bem exercê-la e a todos os seus direitos – humanos, políticos e poéticos – e destinar-se, por vontade própria, a ser madrugadora mulher, de muita fé nos mistérios do universo e nas pedras do seu chão.

Das muitas sabedorias de Cora Coralina, me encantam os segredos desvelados em sua poesia, mistérios da natureza que ela nos traduz em versos simples . Assim é no poema A Flor, em que ela conta a “maternidade da terra”; em Pão-Paz, poema dos mais universais, a trajetória árdua para suprir a esperança do alimento. Cora nos revela o pão. Cora escreve com letras de raízes e sementes para nos desvelar a terra, o pão, a flor. E as pedras, sempre:

“Entre pedras que me esmagavam, levantei a pedra rude dos meus versos.”

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