De Poetas & Marginais

Nestes planaltos cercados de palácios e poderes a missão do poeta não foi e nem é das mais fáceis. Sempre houve que se escrever a poesia sob diária e ameaçadora convivência com o poder que a cidade capital abriga, representa e ostenta. Na busca da linguagem humana e da própria humanização de uma cidade rotulada de “fria”, os poetas, que vislumbravam no céu de horizontes largos outros mundos possíveis, tornaram-se marginais na década de setenta.

Eram marginais por fazer uma poesia de contra-cultura (seu modo de expressão), por imprimir e editar suas próprias poesias (seu modo de produção) e por distribuir sua poesia (panfletagem). Papel, máquinas de escrever e mimeógrafos eram considerados armas subversivas. Não existindo outros meios de se publicar que não aqueles que serviam à propaganda política, a poesia brasiliense, mais que qualquer outra do país, tinha essa característica panfletária, que  chamava mais atenção do que o conteúdo (não vou aqui entrar no mérito da qualidade do que se escreveu, e sim me ater ao qualquer-maneira-de-fazer-poesia-vale-a-pena).

Ser poeta marginal era ser contra o sistema e a favor da liberdade de expressão, do amor livre, da igualdade e justiça para todos, da preservação do meio-ambiente e das hortas caseiras. Eram sonhos, revoltas ou ideais que se escreviam e pelo qual muitos dançaram. Claro que o sistema não entendia nada de poesia, só de marginal, mas juntando-se as duas palavras a  tradução era subversão. Logo, um poeta, louco e subversivo, solto nas ruas, era (e ainda é) o maior perigo.

Os poetas, os tais marginais da década de setenta, ingenuamente ou até por assimilação e herança do movimento beat americano se enrolavam aqui na fabricação  e reprodução artesanal de suas obras, procurando o maior público possível. Mas também lutavam para furar o mercado editorial, por uma editora de porte, com direito à chancela, divulgação, boas vendas e, quem sabe, até prêmios.  E o sistema (leia-se ditadura, governo ou o que acharem mais conveniente) reprimia o ato de imprimir porque interpretava à esquerda e à direita os poemas que lhes caíam às mãos – ou aqueles em que botavam as mãos em cima, o que era mais comum.

Iogurte com farinha, por exemplo, de Nicolas Behr, era tão ou mais perigoso na época que o diário de guerrilha de Che Guevara.  O sistema entrou em pânico com a fórmula caseira da dita mistura poética que poderia ser a fórmula (eureka!) para a construção de uma bomba atômica. Mesmo a estranheza de só encontrarem versos não evitou que a repressão fosse levada a ferro e a fogo, chegando ao descalabro de ressuscitar verdadeiras inquisições, das quais foram vítimas dezenas de poetas, que de repente descobriram que “poesia marginal” era caso de polícia e não um “romântico movimento” de raízes americanas ou francesas e que a rua do bar Beirute não era, decididamente nem o Soho nem o Quartier Latin.

E a poesia foi parar no tribunal.

Em julho de 1978, no Bar dos Poetas, Nicolas Behr e eu fizemos um lançamento conjunto dos nossos livrinhos de poesias – o dele,  Chá com Porrada, e meu,  Parto Normal, no melhor estilo mimeógrafo e carimbo. Dias depois Nicolas teve sua casa invadida por agentes da Polícia “literária”, que apreenderam não somente todos os exemplares de sua obra poética, considerada “obscena”, como também os livros de outro poetas amigos, inclusive os meus, seus livros escolares, sua bibliotequinha de autores clássicos aprovados pelo sistema, seus discos de música popular brasileira e até seus carimbos de arte postal.

Bem que eles queriam enquadrar o poeta de cabelos compridos e a nós outros na Lei de Segurança Nacional. Não sei se por invocação do espírito de Kafka ou  dos inquisidores da Idade Média, chegou-se ao absurdo de um processo criminal por pornografia. Um processo surrealista, cujo ato final deu-se em uma sala de julgamento do Tribunal de Justiça, onde policiais federais foram interrogados sobre literatura enquanto um réu perplexo jurava sobre a bíblia não pertencer à seita dos meninos de Deus. Nicolas Behr (e nosotros) foi absolvido pelo juiz, cuja sentença, diga-se de passagem, foi decididamente poética, já que se tratava de poesia, ora bolas.

É impossível não reconhecer, além da paranóia, o autoritarismo e o olho de Big Brother em seus eternos retornos quando se trata da liberdade de pensar e pensar diferente. Pior: quando se trata de escrever o que se pensou e escrever diferente, o poder não hesita em punir qualquer verso que não possa ser reconhecido como um soneto amoroso e bem-comportado dirigido à mulher amada.

O poder em Brasília não vacilou em perseguir o pensamento, a expressão e o  modus faciendi, de uma geração de poetas e artistas. E muitas vezes a acusação não pôde ser discutida em um tribunal e o poeta não foi absolvido, como no caso do Victor Alegria, livreiro e editor, dono da legendária livraria Encontro, que foi  ponto de agregação da tribo de artistas e poetas à margem. Victor sofreu pena de prisão e tortura por ativismo cultural.

O papel da imprensa de Brasília em relação ao movimento cultural dos anos setenta foi deplorável. Os jornais escudavam-se na notícia e demitiam opiniões e as manifestações artísticas.  Um dos primeiros exemplos que dou, notório: o jornalista Luís Machado publicou na edição de 9 de outubro de 1979,  uma página inteira intitulada “Poesia, pô!”, com os versos de dez poetas da cidade, dentre eles Eudoro Augusto, Luís Martins, Nicolas Behr, Salomão Sousa, Cuca Escosteguy, Paulo Gustavo e eu. Dia seguinte foi demitido (a página e as poesias estão nos arquivos e quem quiser fazer a autópsia do pecado será surpreendido por sua sobrevivência: ela vibra).

E esse não é exemplo singular, pinçado: os donos da imprensa fizeram outras gracinhas do gênero – e até hoje tem essas recaídas. Outro exemplo, também público, notório e lamentável é o do poeta e jornalista TT Catalão, que escreveu, para o mesmo jornal, em 1984, artigo intitulado O Reitor e o Feitor. Identificada a semelhança entre o reitor do artigo com o reitor da Universidade de Brasília, TT Catalão foi demitido por ordem telefônica dada ao jornal por  uma voz soturna.

Mas tudo isso aconteceu na “Velha República”.  Porque depois veio a “Nova República” e passamos a viver em democracia plena, onde não cabiam mais as censuras políticas, ideológicas ou culturais, certo?

Errado. TT Catalão continuou proibido de escrever para o Correio Braziliense durante muito tempo (foi considerada pessoa muito perigosa nas “letras”), foi readmitido e demitido mais duas vezes conforme o humor dos donos de plantão, e  eu mesma fui demitida do mesmo jornal por ter escrito uma obra de ficção de muito mau gosto sobre bandidos que matam jornalistas (como se assassinato fosse obra de muito bom-gosto).

Notícias de além-capital chegavam para nos dar conta que a prática da censura e da repressão não eram exclusividade da capital: até Maria Amélia Mello foi demitida do Centro de Cultura da Fundação Rio e os LP’s de Torquato Neto e antologias editadas sob sua responsabilidade foram apreendidos – e por aí vai, que esse Brasil é grande demais e foram tantos os poetas e tanta a poesia e a arte condenados pelas inquisições, o que prova que infinita só mesmo a imbecilidade humana.

Mas agora estamos em plena democracia, novíssima república, não  importa quem continue mamando nas tetas do governo ou quem prefira o leitinho desnatado das grandes empresas e o ouro dos banqueiros, certo?

Errado.

Os exterminadores se revezam mas mantêm o mesmo endereço do passado para impedir o presente e o futuro. Poetas, livre-pensadores e que tais, marginais ou marginalizados, ainda são temível ameaça nesta chamada atual  “democracia”. A neo-patrulha ideológica e as leis de mordaça estão aí para executar a demissão dos descontentes ou a expulsão dos coerentes.

E continuam tão perigosos os poetas que o eterno retorno da lei da censura demitiu, em março do ano de 2003, do mesmo jornal citado acima, pela quarta vez (!) o poeta e jornalista TT Catalão, por crimepensar e livre-escrever.

Enquanto isso, os marginais não-poetas surrupiam o dinheiro dos cofres públicos, regalam-se às custas dos miseráveis e famintos, oferecem balas de fuzis à sociedade, tornam-se manchetes diárias dos jornais, estampam as capas coloridas das revistas, recebem além de três minutos no horário nobre das tevês e conseguem ser mais famosos que qualquer poeta brasileiro de todos os tempos!

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