Brasília foi chamada de “a cidade dos burocratas” pelo escritor Márcio de Souza, de “cidade construída para o filme Contatos Imediatos do Terceiro Grau” pelo falecido humorista Henfil e ainda mereceu de uma revista, um caderno especial intitulado A Ilha da fantasia, com a chamada na capa: “Brasília fica no Brasil?”
Aliás, quase todos os escritores e artistas que por aqui deixam suas diversas marcas não se controlam e emitem destemidos diagnósticos sobre uma doença chamada capital federal. Para Henfil, por exemplo, Brasília é resultado de uma febre alta de Nonô, delírio de grandeza mesmo. Para o dramaturgo Dias Gomes a cidade estava terrivelmente associada à censura, tantas vezes imposta à sua Sucupira. Enfim, de modo geral, para todos aqueles que são premiados com a inevitável pergunta: “o que você acha de Brasília?“, as respostas parecem ser de um inconsciente coletivo se repetindo em entrevistas individuais: Brasília é fria, monótona, vazia, distante e poderosa. Eis o xis da questão: com todo o simbolismo de sua arquitetura, de sua construção e sua razão de ser, Brasília está visceralmente ligada ao Poder. E esse Poder tem pesado, diga-se que injustamente, sobre dois milhões de habitantes, como se todos, meros inquilinos desta cidade, estivessem no mesmo barco, usando os mesmos remos e indo na mesma direção. Pior: como se fossem os donos do barco.
Sem bairrismos e tradições de quatrocentos anos para defender, que ao menos se faça saber por aí que a existência candanga não goza de privilégios da corte nem priva das amizades excelentíssimas e potentíssimas. Candango é candango, ou seja, povo, aqui em Brasília, é o mesmo que já foi cheirado em outro lugar. Completamente errado, pois, dizer que Brasília é a Ilha da Fantasia, sem pobres, sem desemprego, sem problemas de saúde pública, de violência, de marginalidade. Sem povo, enfim, com seus peculiares anseios, carências e manifestações. Mesmo no Plano Piloto, que foi mostrado num bem cuidado diagrama da ilha como se fosse um boeing jumbo superluxo, a roupa usada ainda é a da classe média, tipo paletó-e-gravata de oito às seis, e camiseta e jeans para freqüentar supermercados, universidades e outros lugares nada palacianos.
De passagem, informo aos navegantes que os relógios daqui são tão falsificadamente suíços como nos outros estados (compra-se na feira dos importados) e que a semana reproduz o calendário vigente com fidelidade – tem sete dias, cinco deles destinados ao emprego ou ao trabalho. Onde se lê trabalho, leia-se povo trabalhando de segunda a sexta, de oito às seis, no mínimo. Muitas vezes, é claro, o povo excede: dá plantões de utilidade pública e ainda usa e abusa de bicos.
A idéia de corte sugere dezenas de milhares de súditos de boa linhagem e alguma fortuna disputando favoritismos, tecendo intrigas políticas reais e irreais e corrompendo desenfreadamente. A corte, na verdade, não passa de idéia megalomaníaca usada como fachada que serve para esconder os desmandos dos mesmos de ontem, hoje e sempre colunáveis do Poder. São estes as próprias colunas que sustentam sonhos de poder e opulência – sim! – mas às custas do pesadelo ininterrupto de quase dois milhões de pessoas. Pois a Ilha da Fantasia – ou corte – é mordomia de minoria.
O povo daqui é o mesmo dali e dacolá. Temos até o povo classe média, que habita as duas asas do imaginado boeing luxo, com montes de problemas parecidíssimos, senão idênticos, aos de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte etc. Na Asa Sul existem prédios e até pardieiros por obra e graça de intempéries e de uso, muito uso, apelidados carinhosamente de jotakás. Ainda na Asa Sul, que segundo a matéria Ilha da Fantasia abrigaria somente funcionários do primeiro escalão do governo e dirigentes de estatais em excelentes apartamentos triplex, moram dezenas de milhares de pessoas normais, trabalhadoras, humanas e intensamente vitimadas pelos descalabros econômicos da corte, em apartamentos monoplex mesmo. Na Asa Norte, o quadro é praticamente o mesmo e a diferença do padrão fica por conta de sua ocupação e ativação mais recentes. Nesta asa do “aviãozinho” moram também profissionais liberais e militares, e outros trabalhadores igualmente solicitados e necessários, devido ao tipo de serviço que prestam à comunidade, como mecânicos, eletricistas, secretárias etc.
Quanto ao Lago Paranoá, que muitos querem ver Baía da Guanabara na altura de algum porre, foi especulado imobiliariamente assim como os bairros de Ipanema, Leblon e outros da ex-capital. Há mansões, pois, em estilos colonizado, espacial ou mediterrâneo, arquitetadas nas pontas de picolé e penínsulas, onde habitam pessoas de todos os valores (e princípios). Diga-se de passagem que há nos bairros Lago Sul e Lago Norte construções de e para todos os gostos, com uma certa prevalência para o mau gosto, batizado de modernível (moderno e horrível), mas isso é outra história.
Sobre a periferia, basta dizer que a miséria daqui se define em linhas horizontais da mesma maneira que se define em linhas verticais no Rio de Janeiro. São as favelas. Existem, sim, Muitas. Planas. Longe dos olhos e do nariz da corte. Algumas já bem perto do nariz da corte. Tudo por decisão da corte.
Ilha da Fantasia? Onde, meu irmão? Os privilegiados que buscam tal paraíso vão curtir feriadões e férias nas ilhas e cidades praieiras como Guarujá, Ubatuba, Angra, Búzios. Sempre foi assim. Ou estou mentindo? A maioria das pessoas de lide diária e pouco poder econômico, não podendo aportar em nenhuma ilha de verdade, no muito passeiam pelo centro da cidade – o bojo do “avião” – num ritual bastante provinciano de caldo de cana com pastel na rodoviária, piquenique no Parque da Cidade, namoro na Torre de TV e uma olhadinha nas cataratas do Palácio da Justiça. A classe média vai aos shoppings, não ao paraíso.
Portanto, assim como o Ceará, Brasília fica no Brasil e tem cara de Brasil. Incontestável fato.
Brasília é o melhor lugar para se investir em disco voador. Para loucos, poetas, músicos e místicos esta cidade oferece alguns redutos para criação, amor e boemia, com direito a um espetacular e gratuito pôr-do-sol. O resto é conseqüência dos absurdos políticos, econômicos e sociais sempre vigentes.
Publicado originalmente em 1983 no Correio Braziliense.
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