Alguém me contou essa lenda. Vou contar do meu jeito agora.
Havia um reino, em algum lugar. Não era cidade, nem povoado, nem aldeia, apenas um lugar onde habitavam pessoas em suas pobres casas em natureza bela. Uma planície, um vale, alguma montanha ao longe e três horizontes para os sóis, as luas e os arcos-íris cercavam um grande castelo, encravado no alto da única colina como um centro de universo.
Em cada canto uma torre e tantas janelas em várias alturas para os olhos que a tudo podia-se ver – os movimentos dos astros, das estrelas e das pessoas.
Fez questão o rei de não erguer nenhum muro, a cerca viva era baixa e as flores vermelhas bastavam para avisar que nenhum do povo pisasse em terra real sem consentimento.
O rei reinava em seu castelo com poucos soldados e quase nenhum artifício de guerra, pois que havia conseguido estabelecer as hierarquias por força de decretos. O povo era agradecido por não sofrer brutalidade além do necessário – ração suficiente, vestes, moedas e teto mínimos, duas filantropias por ano e os trabalhos forçados nas minas de carvão que geravam a prosperidade do reino.
No castelo tudo era limpo como seus lagos – a prataria, o piso e as roupas de cama. Os serviçais também faziam um serviço limpo. A riqueza era polida e os nobres viviam de boas maneiras e educações. As relações e os sentimentos eram protocolares, amor e sexo litúrgicos só entre os da mesma estirpe.
O título de princesa era da moça de beleza frágil, última nascida do bom cruzamento das linhagens, destinada a receber mimos em gaiola dourada.Assim seria passarinho para sempre, e tudo fazia crer que aninhava-se bem em gaiolas douradas.
Não fosse um baú recolhido de uma pirataria ao mar, separado dos tesouros e deixado esquecido em uma câmara de objetos atravancados. Não fosse descoberta a passagem secreta ainda estaria lá e jamais a princesa o teria desencadeado por curiosidade infantil.
Leu o primeiro livro de fábulas e mais outros de aventuras.
Jovem, quase adulta, já havia se apossado dos mapas dos territórios estrangeiros e das possibilidades dos vôos do seu coração. Ainda mais adulta vasculhou o fundo do baú e leu os livros da condição humana e dos sentimentos. E não mais aprendeu nenhuma coisa, nem as que lhes dizia o próprio sábio do reino.
Com o baú dentro do peito vivia em seu castelo, tão mais frágil em beleza quanto mais passavam os anos. Ninguém sabia se era alegre, triste ou se fingia, apenas que um dia, lhe prometeram, seria uma tal rainha.
Do seu lugar preferido, o terraço avançado entre as duas torres frontais, acostumou-se a jogar os olhos no mundo, de manhã esperava o sol, à tarde se despedia, era de hábito a alegria.
Seu olhar reparou um dia que bem mais perto havia sobre a terra um caminho por onde passavam as gentes que iam e vinham das minas.
Esqueceu-se dos seus mapas e de forçar o olhar além. De manhã, esperava o sol e a fila de gentes em direção às minas, à tarde contava um por um os mineiros e fazia sua despedida. Queria cumprimentá-los, mas todos baixavam a cabeça, como mandavam os decretos. Menos um, o do passo afastado, que pela manhã vinha na frente, à tarde se atrasava, virando o rosto cada vez mais para ver a princesa.
O moço carvoeiro, na andança desse trabalho, foi então se apaixonando. De manhã o aceno com a mão limpa, à tarde um pano vermelho usava. De manhã, o rosto quase nítido, à tarde todo encarvoado, com vergonha da amada.
A princesa bordou um lenço vermelho, como se fosse bandeira, para acenar nas passagens que apaixonada também estava.
E assim passaram os dias, os de cada sol que se punha, das luas que se mudavam, entre os sinais em vermelho que os corações enviavam. Maior era o amor da princesa, mais gritava sua bandeira para que o carvoeiro a ira do rei enfrentasse e a levasse deserdada.
Na manhã de um dia tal o carvoeiro não passou. Na próxima também não. A princesa contou todas as manhãs e tardes, levantou mais sua bandeira, debruçou-se no terraço, subiu à torre mais alta, quase soou os sinos. As gentes eram as mesmas, ninguém havia morrido nas minas, chorou sem saber a razão.
Exausta encolheu sua bandeira, dobrou-a reduzida a lenço e guardou-a no baú dos livros, junto com a fuga traçada nos mapas e as esperanças perdidas.
A princesa de beleza frágil amadureceu em seus anos um rosto de vida marcada e oculta sabedoria. Vencida em sua vitória sobreviveu à ruína, revolucionou suas terras, ensolarou o castelo, ostentou todos os livros, deu seu corpo nas alcovas e fechou todas as minas. Construiu nova cidade, trouxe sementes boas, alimentou sua gente e fez revogar as leis. Antes não se sabia princesa, e não quis nunca ser rainha.
Em um dos dias da sina, anuncia-se uma visita, com alvoroço de trombetas e mudez de canarinhos.
Olhares pousam admirados sobre vestes de requinte, adereços preciosos e vários brilhos de ouro: eis que chegara belo e importante homem, majestade muita rica, queria falar à rainha, com pompa e honraria.
A passagem foi aberta e indicado o caminho, fazendo-o chegar a um terraço onde quase nua uma mulher o arco-íris coloria.
Ajoelhou-se a seus pés a majestade de luvas, com respeitos e mesuras, orgulho saltando do peito.
– Minha rainha!
– Quem é você?
– Não me reconheces?
– Jamais o vi.
– Eu sou aquele que passava todos os dias na ida e vinda das minas, vestido com minha miséria, ensujecido das fumaças, sem nenhum tostão furado, que a ti mirava apaixonado, dono de um pano vermelho, coração da pobreza dos meus dias, com o qual te acenava. E tua bandeira vermelha, constante por sobre as horas, naqueles pálidos dias, dizia-me que tu também o carvoeiro amavas, que a mim tu também querias!
E desse amor me fiz forte, parti com meu lenço vermelho para as terras mais longínquas, onde ganhei as guerras, conquistei muitos tesouros e tornei minha face limpa.
E eis-me aqui, amada minha, enfim trago-lhe diamantes e agora posso pedir-te, sim, que sejas a minha rainha!
Triste o rosto da rainha ao olhar o nobre estranho e dizer-lhe gravemente:
– A hora do carvoeiro passou.
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