Se Kafka estivesse vivo sua perplexidade seria domesticada por tantos choques sociais, políticos, econômicos, culturais e até elétricos? Se estivesse vivo e, ainda inadaptado, o sistema o engoliria com processo e tudo? Se estivesse vivo e ainda oscilando entre o judaísmo e a verdade absoluta mil seitas lhe fariam ronda e o aliciariam? Ou sofreria ele a pior contradição da sua estranha solidão: não estaria só, mas por certo muito mal acompanhado?
O que já se escreveu sobre Kafka não está no gibi. Os eruditos e os metidos se acham no direito de explicar Kafka, mitificando e distanciando-o cada vez mais do leitor. Sim, porque depois de complicarem tanto a vida e a obra do angustiado escritor, o que se colhe aqui e acolá são arrotos orgulhosos de alguns poucos iniciados, que fazem questão de perpetuar a lenda de que Kafka é um “escritor difícil”. E quem “passa” por ele é como se passasse em um vestibular que abre as portas de uma literatura feita somente para gênios.
Kafka foi um gênio, sim, mas não é preciso ser um para ler e sacar que o processado Joseph K é ele mesmo, escrevendo O Processo, construindo sua Muralha da China, redigindo as Cartas a Meu Pai, praticando A Metamorfose, habitando um Castelo administrativo, desossando a América e antecipando o hitlerismo exterminador na Colônia Penal.
Para descê-lo do pedestal em que o colocaram, isolado e inatingível como um deus louco, é preciso antes desnudar sua genialidade e mostrá-lo mais humano. Kafka foi um homem pobre, solitário, anti-social, sensível e tuberculoso, que escreveu contos, novelas, romances e muitas outras histórias, tudo muito surrealista e fantástico para a sua época, uma época que pretendia aprisioná-lo literariamente aos corredores burocráticos que manipulavam sadicamente as filas previdenciárias, ou retê-lo num interminável processo de instrução maquiavélica.
Se Kafka estivesse vivo – profecias cumpridas e alguns prêmios acadêmicos – apenas testemunharia mais. Escreveria mais processos e metamorfoses, trocaria sua tuberculose por um câncer de pulmão e descerraria a única placa existente no mundo em comemoração ao seu centenário de vida absurda.
E então ele não seria mais Kafka, o difícil, o surrealista. Seria apenas um escritor realista, escrevendo sobre acontecimentos mundanos e cotidianos como, por exemplo, o cruzamento do petróleo com o dólar, a fabricação de revoluções na América Central, as invasões de ilhas habitadas por carneiros no Atlântico Sul, sorvetes de flocos atômicos produzidos em usinas nucleares, as novas colônias penais do império, o terror e umas tantas guerras – banalidades que se vê nas tevês.
No dia 3 de junho de 1824, aos 41 anos, a febre consumindo-o enquanto ele ajeitava alguns manuscritos, Kafka pediu morfina a seu amigo Robert Klopstock. Ao negar-lhe a morfina, ele disse seu último absurdo: “mate-me, senão você é um assassino”. Kafka morreu genialmente.
E os últimos oitenta anos em que não viveu são o absurdo que ele já havia escrito.